Era novembro, não sabia bem a hora, mas já não se via luz ou alma transitando aquele parque, onde nem o vento ousava quebrar o silêncio com seu tradicional assovio. De certa forma, o tempo parecia estático, inerte. Às vezes acho mais fácil acreditar numa existência divina quando a rua é fria, vazia, quieta. Talvez porque me faça refletir, ou talvez por ser reflexo de como me sinto. "Nunca se sabe", costumava dizer.
Lembrava, sóbrio, do torpor que vivera até então. Fazia sentido caminhar. Me entenda, não que eu não possa pensar sentado à beira de uma janela, mas existe algo de mágico no andar sob as estrelas divagando. Ao menos para mim. De certa forma é como se cada passo me fizesse contornar o abismo que nos chama toda vez que remoemos o passado em algum canto escuro. Mas não. Eu não quero me atirar no meu próprio desconhecido. Nunca se sabe, talvez não tenha forças para voltar. Ele que venha à luz de minhas idéias, então conversaremos.
Inúmeras vezes tal abismo se apresentava para mim em diversas formas, cheias de cores, sensações, gostos dos mais diversos tipos. Fosse um carro novo, uma mulher perfeita ou meu copo de cerveja, todos eles disfarçavam que - mesmo ao obtê-los, permaneceria eu. "Raios", ainda assim teimava em querer tudo aquilo que me provocasse desejo. Ah, desejo... Onde mais eu poderia descansar minhas angústias senão na fantasia de felicidade instantânea?
Eis que o vento me toma de volta à realidade. "Grato", disse eu. Já estava longe, do meu lar, mas perto demais do meu abismo. Hora de voltar. Dobrei à esquerda na Rua De Leon, embora eu nem soubesse que ela existia. Enfim, eu tinha tempo. Nada de fascinante, ou até mesmo digno de atenção. Havia um barzinho mequetrefe escondido atrás de uma obra em construção. O único rebite ali era servido pelo barman. Via ali um espelho, me identificava com aquela gente cuja felicidade era química, curta e servia como disfarce para os problemas que deixavam na porta de entrada.
Resolvi seguir os conselhos sussurrados pelo vento, e tomei novamente a esquerda. A Avenida da Luz, como marcava a placa, só podia ser ironia. Mal enxergava a calçada. E Avenida? Só se fosse em 1830. Incrível como o fim de ano deixa a gente pensativo. Enquanto pesava sorte e revés, tornava frequentemente à memória uma antiga paixão. Senti então o perfume que ela usava, só para mim, só em ocasiões especiais. Lembro a última vez que ela me presenteou com aquela essência. Voltávamos de um passeio no Cais, quando então começou a chover - torrencialmente, diga-se de passagem. Corremos para minha casa, em meio a risadas e incessantes gotas d'água. Ensopados, então, entramos pela porta num misto de risos infantis e uma lascívia imprópria para menores. Ela ainda tremia um pouco, mas já estava acesa. Foi então, de repente, que aquele perfume - só dela - me tomou. Foi a última vez que senti tamanho êxtase, que ultrapassava facilmente as barreiras da percepção. Era algo angelical, divino.
Poxa, já faziam oito anos desde aquela noite. Que criatura perversa ousaria brincar com o destino de um homem dessa forma? Havia no mundo outra pessoa com aquela essência? Mas ela não sobrevivera ao acidente, só poderia ser outra pessoa. Estou delirando, não há outra explicação. Devo me conter. Com certeza, devo. Será que devo? Mas quem diz que devo? Eu? Os outros? Não há ninguém aqui, além de mim...
Sem perceber, meu peito se enchia com uma sensação de calor, carinho. Minha visão já não era tão ébria, o mundo ao redor parecia clarear. Devo estar louco, pensei. Não estava nem perto de amanhecer, mas sentia como se fosse meio-dia no verão. Sentia-me enlaçado por aquele perfume, como se ela me abraçasse naquele instante. Resolvi retribuir. Conseguia senti-la completamente. Não podia estar louco. Devia estar acordando.
Talvez fora eu que sofrera o acidente, e ela estava me esperando. Ou eu estava delirando pelo amor da minha vida, que vinha me salvar ou me entregar a meu abismo.
De um jeito ou de outro, ela era um anjo. Para mim. Enfim, Louco ou Desperto, fica a critério de cada um. Eu vou tomar uma decisão por mim.
Até porque... Nunca se sabe.
Taruhan Sepak Bola
Há 3 anos